PROVÃO: a melhor defesa é o ataque. (Artigo publicado em 1997 contra FHC)
Prof. Sérgio Augusto Pereira de Borja
Nada é dado pelo estado sem que antes tenha sido retirado da sociedade. Certamente o presidente americano, autor desta frase, não deparou no seu primeiro lampejo cerebral, com o amplo, atual e explosivo sentido contido no seu conteúdo. A leitura conceitual não se restringe somente a sua conotação econômico-financeira em sentido tributário, ela vai muito mais além. Um modelo constitucional liberal típico possui dois capítulos. Um dedicado às franquias seja, a parte dogmática que disciplina os direitos e garantias individuais e coletivos criando um escudo de exclusão frente ao estado, desenhando portanto as fronteiras da sociedade civil, e outro, que cria ,estrutura e regulamenta o funcionamento do estado, seja, a parte orgânica da constituição. A fronteira entre a parte dogmática da constituição e a atividade de sua parte orgânica é delimitada pelo princípio da legalidade dispondo que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei,sendo que até pouco tempo este era constituído de sanções negativas ou ditas de proibição. No entanto o estado moderno cresceu e ultrapassando até mesmo suas funções protetoras(direitos econômicos e sociais) alastrou sua atividade reguladora. É o fenômeno identificado pelo eminente professor Tércio Sampaio Ferraz Jr que ao apresentar a obra de Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, identifica no pensamento daquele autor o surgimento das normas chamadas positivas ou de função promocional. Assim, na forma clássica “quando o ordenamento de função repressiva e protetora procura “provocar” certas condutas, atua sempre de uma forma negativa: prevalece a técnica do desencorajamento. Já o ordenamento promocional vai muito adiante, uma vez que, neste caso, a técnica típica é “positiva”, isto é, o encorajamento de certas condutas que, para se produzirem, necessitam das sanções também ditas premiais.”(opus citae fls.13)
Este fenômeno é transposto atualmente para a realidade legal e econômica brasileira de forma completamente desfigurada. A atividade promocional do estado ao invés de premiar o cidadão na sua atividade legiferante, ao contrário pune, pois passa a invadir, indebitamente, o cerne do próprio estado de direito seja, a esfera dos direitos e garantias inalienáveis. O governo, “surfando” sobre o influxo da economia global virtual(hot money) ,se esquece dos princípios de economia real(física), isto é, em vez de aplicar em sua infra-estrutura logística no concernente as suas finalidades com relação à segurança, saúde e educação, desvia seus ativos direcionando-os para equacionar seus problemas financeiros na área bancária, monetária e cambial(déficits públicos) ou mesmo para investir diretamente em multinacionais, como é o caso aqui no nosso Estado (GM/FORD) . Assim, nesta razão, com o corpo transformado em verdadeira sucata, com o cérebro governamental isolado em gabinetes e dissociado da profunda crise social,não podendo suprir a demanda sepulta-a através de leis que devolvem problemas para a sociedade civil. Invertendo a demanda usa o ataque como defesa. A pletora de leis recentemente aprovadas comprova a tese e que esta não se restringe somente ao “provão” sobre os cursos, mas, face ao amplo leque de assuntos regulados, a um verdadeiro “provão” que traduz seu real significado semântico como provação a que está sujeita a Sociedade Civil. São exemplos: Lei nº9.131/95 e decreto 2.026/96 que institui e regulamenta o malfadado provão; Lei 9.307/96 que regulamenta a arbitragem; Lei 9.434/97 sobre doação presumida de órgãos; lei 9.437/97 do desarmamento. Com relação ao provão referente aos cursos é evidente a estratégia governamental. Possuindo um parque de universidades completamente sucateado pela falta de investimentos básicos e não podendo pagar condignamente professores e funcionários para manter o ensino público, visava num primeiro momento, com a instituição do provão ,desmoralizar o sistema buscando sua imediata privatização. Ledo engano pois, malgradas as deficiências materiais, o sistema de mérito que vige no sistema público de ensino provou que seleciona através do concurso público de docentes e de discentes (vestibular), através dos graus e classificações obtidas, um alto nível de proficiência e aproveitamento. Literalmente o sistema nacional de ensino é ortodoxamente platônico pois com os salários congelados por mais de três anos segue as premissas estabelecidas por Platão que afirmava que tanto professores como militares deveriam viver com o ouro e a prata da alma que receberam dos deuses, para que não se contaminassem com o ouro ímpio dos homens. Ironicamente a ascese a que estão submetidos mestres e alunos, apesar das crônicas deficiências materiais, comprovadamente exalta o espírito.Não analisaremos aqui a burlesca petição de princípio implementada através da instituição de provas sobre provas. Prova para admissão (vestibular); provas mensais de aferição; provas finais semestrais; provas de trabalho de conclusão de curso; provas posteriores para admissão em órgão de classe; provas de admissão para exercício do cargo; acrescidas do provão. É de questionar-se: Provão ou provação ! Restará instituir provas anuais para os professores e finalmente sobre aqueles que instituiram o provão. Com certeza os primeiros serão exaltados e os últimos não serão aprovados,nem pelo povo, nem por seus examinadores, em razão de seu flagrante equívoco político estratégico e dos erros cometidos na formulação das questões( prova de direito).
Mas não é somente o sistema de ensino que está sob o provão instituido pelo governo. Também através das demais leis instituiu-se um “provão” para as demais áreas. O sistema de saúde ,anêmico, necessita da prorrogação da lei que institui a CPMF, lei do imposto sobre o cheque; a carência dos bancos de órgãos e do próprio sistema, nesta área, faz com que se aprove uma lei que é uma ignomínia contra os direitos indisponíveis, não só sob o aspecto legal da cidadania mas sob a própria essência e significância do direito natural do ser humano, a instituição da ficção jurídica teratológica da doação tácita de seus órgãos. Na área da justiça e da segurança, da mesma forma perpetra-se o mesmo tipo de invasão da área de disponibilidade da cidadania, pois pretensamente através de lei dispõe-se, numa penada, inconstitucionalmente,contra a garantia da prestação jurisdicional, através do estabelecimento da mediação e arbitragem. Carl Schmitt expressava que a Constituição é a expressão de um sistema fundamental que visa estabelecer a legalidade, competência , controlabilidade e forma judicial. Para ele o ideal pleno do Estado de Direito culmina na conformação judicial geral de toda a vida do Estado. Para toda a espécie de litígios, seja entre as autoridades superiores do Estado, seja entre as autoridades e os particulares, seja entre o Estado Federal e seus membros, haveria de haver um procedimento judicial. Assim também, os Juízes seriam independentes, na razão direta que houvesse também regras gerais fixadas de antemão. Só a validez de uma regra dá força a decisão judicial. Ali aonde falta esta regra, pode-se falar, em suma, de um procedimento de mediação, cuja autoridade prática depende da autoridade do mediador. Se a importância da proposta de mediação depende do poder do mediador, então não há mediação autêntica, senão uma decisão política mais ou menos equânime. O Juiz , como tal, não pode ter nunca um poder de autoridade independente da validez da Lei. Um mediador ou um comprador podem gozar, inclusive sem poder político, de uma autoridade pessoal mais ou menos grande, mas somente sob um duplo pressuposto de que, primeiro, às partes litigantes sejam comuns certas idéias de equidade, decência, ou certas premissas morais, e segundo, que as contraposições não tenham alcançado um grau extremo de intensidade. (Schmitt – Teoria General de la Constitución – fls. 190) A política econômica recessiva que causa inadimplência, quebras e desempregos aliada ao sucateamento crônico das polícias, faz eclodir a violência rural e urbana em níveis ameaçadores. No entanto não se desarmam os bandidos reais. A cidadania já ameaçada pela delinquência normal, passa a ser ameaçada pelo estado, com a instituição da ficção do crime tácito de possuir arma sem cadastro. Este é o “provão” porque passa o povo brasileiro sob o governo de Dom FFHHCC.Quosque tandem Catilina abutere patientia nostra.
prof. Sérgio Borja, 47 anos
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Professor de Direito Constitucional da PUC/RS
Professor de Instituições de Direito Privado e Comercial da UFRGS.
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Publicado no Jornal do Comércio em 07.11.1997.